Desde que as peneiras surgiram no repertório das utilidades, os protagonistas da política, em situações de apuro e em última instância, apelam para elas com o intuito de obscurecer o sol dos fatos.
A inutilidade desse tipo de negacionismo não desanima quem dele lança mão porque o último recurso ainda é um recurso, como sabem os advogados. Vá que cole. Mesmo se a cola usada for a saliva dos discursos, sempre é possível contar com a ingenuidade dos ingênuos, com a credulidade dos crentes, com o companheirismo dos companheiros e com o apoio de um jornalismo que faz jornal sem sequer espiar os fatos pela janela das redações.
São reflexões que me ocorrem ante reações que observo às palavras do ministro Luís Roberto Barroso proferidas num lugar onde, em virtude de seu cargo, não poderia estar. Ali, sua simples presença como um dos onze “supremos” (na concepção do ministro Gilmar Mendes) passava a mensagem que agora se diz que não passou. É o que se percebe em manifestações como a do STF sobre o caso. Por um lado, o Supremo pretendeu isolar a instituição, entendendo que Barroso falava do voto popular… Essa tentativa foi incompatível com a repercussão. E ela foi tanta que até o omisso senador Rodrigo Pacheco que transformou o Senado em parlamento baldio, pôs-se de pé pelo Brasil e cobrou retratação.
Ninguém do outro lado da praça, como era de esperar, levou a sério a cobrança do senador. Para quem tem olhos de ver, porém, o sol não tomou conhecimento da arrombada peneira e não alterou o modo como milhões de brasileiros percebem a conduta da ampla maioria do STF a respeito da atual oposição brasileira. Entenderam essa colegialidade bem representada cada vez que Barroso falou na primeira pessoa do plural. Para tanto, basta uma olhada no conteúdo da sacola dos inquéritos abertos por Alexandre de Moraes.
A propósito, é importante recordar o ambiente em que transcorreu o governo Bolsonaro. Alguém poderá dizer que foi ele quem abriu confronto com o STF? Alguém o viu descumprir ordem judicial, mesmo quando lhe vedava o que era prerrogativa sua, como, por exemplo, nomear o Diretor Geral da Polícia Federal? Em 26 de agosto de 2021 o Correio do Manhã publicou uma lista com as 123 ocasiões em que, até então, o STF havia alvejado o governo Bolsonaro. Conheça ou relembre disparos inaugurais de 2019, ano de início do governo:
– Em 10 de maio de 2019, a ministra Rosa Weber deu cinco dias para Bolsonaro explicar o decreto que facilitou o porte de armas.
– Em 10 de maio de 2019, o ministro Celso de Mello deu o prazo de 10 dias para o Governo Federal explicar o corte de 30% nas verbas das universidades.
– Em 12 de junho de 2019, após ação do PT, o STF formou maioria e cancelou a Extinção de Conselhos [sovietes] promovida pelo Governo Bolsonaro.
– Em 24 de junho de 2019, o ministro Barroso suspendeu MP de Bolsonaro que transferia a demarcação de terras da FUNAI para o Ministério da Agricultura.
– Em 30 de julho de 2019, o ministro Dias Toffoli proibiu o Governo Federal de bloquear verbas de Goiás em cobrança de dívidas do estado para com a União.
– Em 1º de agosto de 2019, o Plenário do STF referendou a liminar do ministro Barroso que barrou a transferência de demarcação de terras da FUNAI para o Ministério da Agricultura.
– Em 1º de agosto de 2019, o ministro Barroso deu prazo de 15 dias para Bolsonaro explicar sua fala sobre o pai de Felipe Santa Cruz, presidente da OAB.
– Em 5 de agosto de 2019, a ministra Rosa Weber deu prazo de 15 dias para – Bolsonaro explicar declarações sobre Dilma Rousseff.
– Em 21 de outubro de 2019, o ministro Gilmar Mendes suspendeu a medida provisória que dispensava publicação de editais na grande imprensa.
– Em 27 de novembro de 2019, a ministra Cármen Lúcia deu cinco dias de prazo para Bolsonaro explicar o Programa Verde Amarelo.
– Em 13 de dezembro de 2019, a ministra Rosa Weber deu prazo de 10 dias para Bolsonaro explicar a fala sobre Glenn Greenwald.
– Em 20 de dezembro de 2019, o STF suspendeu a MP de Bolsonaro que previa o fim do seguro DPVAT.
Um ano e meio mais tarde, já havia 123 “cartuchos” o chão. E não foi diferente no ano de 2022. Em compensação, alguém teve notícias de interpelações, suspensões de decretos, invasões de competência, durante o atual governo? A horas tantas, é claro, Bolsonaro perdeu a paciência, subiu o tom e partiu para a grosseria que nada resolve, aumenta o atrito e permite ampla exploração política.
Minha leitura, como cidadão, ao longo desses anos, mostra que o governo Bolsonaro foi, desde o início, antagonizado pelo STF. Essa impressão, consolidada ao longo de quatro anos, persiste. Não são apenas as palavras proferidas que expressam o que as pessoas sentem, pensam ou fazem.