A carta de Pero Vaz de Caminha

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Confesso sem pejo que me enfaram os noticiários sobre o tal coronavirus que todos os dias aparecem estampados nos mais diversos meios de comunicação. Penso que é preciso me livrar destas notícias da atualidade. Tenho que procurar outras leituras para entreter o meu tempo disponível com coisas amenas.

Aleatoriamente, apanho em minha biblioteca e abro um livro de História do Brasil. Quem sabe as coisas de nosso passado sejam melhores que as atuais, penso eu. Abro nas primeiras páginas e o prefácio diz que aquele calhamaço descreve a primeira visão européia desta nova terra até os acontecimentos mais destacados do último século.

No primeiro capítulo traz a transcrição integral da carta que Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei Dom Manuel no dia 1º de maio de 1500, que era uma sexta-feira, localizando-se no que chamou de Porto Seguro da ilha de Vera Cruz.

A bem da verdade, não houve descobrimento, ocorreu de fato o exercício do direito de posse e de colonização de Portugal sobre o novo continente nos termos do Tratado de Tordesilhas, firmado em sete de junho de 1494 entre o Reino de Portugal e a Coroa de Castela espanhola e que estabelecia que as terras descobertas ou a descobrir por onde passava o meridiano a 370 léguas a Oeste da ilha de Santo Antão no arquipélago de Cabo Verde, possessão portuguesa, ficariam assim distribuídas: as terras a Leste do meridiano seriam portuguesas e a Oeste pertenceriam à Castela.

A carta descreve com os mínimos detalhes o relato da viagem desde a partida em nove de março do porto de Belém, em Portugal, a chegada aqui em 21 de abril e a visão da nova terra e de seus habitantes, do que aqui fizeram e de que ainda não deu para perceber se havia ouro e prata por aqui. Até aí, tudo bem. No entanto, ao finalizar a carta, parece que o escriba resolveu plantar a semente que alimentaria o comportamento dos futuros habitantes desta terra. Vejam o que pede Pero Vaz de Caminha ao rei:

“E, pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro — o que d’Ela receberei em muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza”.

A carta deixa claro que já surgia também a marca indelével do nepotismo e das relações cruzadas promíscuas entre o particular e o Estado. A remoção do genro Jorge de Osório para a capital do Reino seria, digamos, um favor daqueles muito especiais e que hoje são corriqueiros entre os amigos do rei entronizado em Brasília. Passaram-se mais de 500 anos e as modalidades de achaques foram se aperfeiçoando, a fim de permitir que surgissem as mais variadas e inventivas formas de apropriação dos recursos públicos despudoradamente, em detrimento da honesta maioria que trabalha com afinco e recolhe os seus tributos.

É fácil concluir que a rapinagem que os países ibéricos fizeram em toda a América Latina durante o período de colonização, que durou até o primeiro quartel do século 19 é fato comum e deixou um pedigree histórico, pois durante o período colonial não havia limites para a apropriação indevida de tudo que estivesse ao alcance dos colonizadores e outros aventureiros.

Pelo visto a História também me enfadonha em certo aspecto e por isto só me resta voltar a ler O Pequeno Príncipe. É mais complacente.