Também pergunto: O que leva um homem poderoso a roubar dinheiro público?

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A realidade crua de um homem enfiando dinheiro sujo no próprio ânus que se torna ponte necessária de diálogo com o governo executivo é a realidade de uma república suja

Lí a reportagem no site da Jovem Pan, comentário do jornalista Adrilles Jorge, e publico, na íntegra, aqui, pois achei, no mínimo, perspicaz.

O que leva um homem de posses e poder e vida feita a roubar dinheiro público destinado à saúde e à salvação de vidas em uma época de pandemia? O que leva um homem a afundar ainda mais a dignidade já perdida enfiando o dinheiro dentro da própria cauda? Esconder a própria sordidez? Duas respostas: uma primeira, psicopatológica: a falta consciente e psicopática de caráter. Um vazio intelectual, moral e existencial tão grande que só pode ser preenchido com mais e mais poder e dinheiro. O próprio rabo adornado de dinheiro e poder nunca será o bastante para preencher a alma vazia de quem rouba dinheiro de doentes à beira da morte.

A outra, sociológica: a certeza reiterada da impunidade. Após anos de Lava Jato e combate sistemático a uma tradição de séculos de corrupção endêmica orquestrada pelo establishment político, a reação deste establishment – encampada sobretudo num STF que ceifa quase todas as garantias conquistadas de investigação e punição ao crime – devolve a esperança da perversão ao psicopata sem caráter que rouba impunemente e enfia a honra e o dinheiro na própria cauda. Um Supremo que dá quatro instâncias de possibilidade de julgamento para quem tem poder e dinheiro para postergar a própria culpa. Um Supremo em que um juiz fica indignado pela quebra de uma ordem de soltura de um criminoso de alta periculosidade  por uma questiúncula processual, mas que pouco se afeta pela própria sociedade ficar à mercê de um bandido solto. Um cenário de alienação da realidade produz a cena para que se crie um político psicopata que produza uma realidade perversa que serve ao próprio ego.

Este o cenário da república brasileira. Uma maioria de corruptos psicopatas e sem caráter e outra boa parte de juízes lenientes com o crime por falha de caráter ou alienação completa da realidade. Juízes que priorizam a interpretação da lei que garante a impunidade a corruptos de alta estirpe em detrimento da visão mais crua da realidade e da justiça.
A realidade crua de um homem enfiando dinheiro sujo no próprio ânus que se torna ponte necessária de diálogo com o governo executivo é a realidade de uma república suja formada pela assepsia orquestrada de uma realidade visível. Uma torre de marfim infensa ao próprio povo. Não adianta um governo querer ser limpo, ou querer governar sem se sujar. Ele terá que dialogar com o tipo mais sujo e alienado de gente em nome da governabilidade em nosso presidencialismo semiparlamentar – que depende de tudo do legislativo e que não pode confiar em quase nada do judiciário.

O diálogo com o demônio – com o psicopata sem caráter que insiste em não ver e enfiar a realidade no próprio rabo – é o caminho? Não parece haver outro a curto ou médio prazo. Um governante que se oponha frontalmente ao establishment será deposto. Um governante que se ajoelhe ao establishment será engolfado pela corrupção. O sistema o expelirá do próprio rabo. Mas qual a medida desta conversa? O povo. O povo votou no senador que enfiou o dinheiro no rabo, dirão os cínicos. Sim, mas qual a opção de um povo entre um senador corrupto e outro ideopata e outro incompetente, todos adestrados por um sistema partidário de caciques que se regozijam com a vaidade a serviço do próprio poder?

A pior escolha é não haver escolha viável. Mas sempre se pode escolher pelo menos ruim. O povo é medida da indignação a quem deve ser mostrada a realidade de esgoto de quem é obrigado a negociar com pessoas que ainda têm algum esboço de boa vontade. O povo pode cada um optar por si mesmo. O indivíduo como base para a melhoria da coletividade. Mas num ambiente sujo por natureza e história, quem quererá se colocar como candidato colocando em risco a própria honra e convicção? Alguém que queira salvar a política por sua convicção utópica pode perder a si mesmo ou ser prontamente deposto de suas convicções pelo próprio sistema. O povo é a medida da coragem de se candidatar, quando houver a possibilidade de renovar a política para candidaturas avulsas, que não sejam cerceadas por caciquismos partidários.

O povo deve observar a sujeira do sistema político para clamar por uma reforma política urgente que – se não vai acabar com a corrupção – poderá limitar os meios para a corrupção. Ao povo devem ser mostradas as manobras e articulações do Judiciário para manter o status quo de uma aristocracia que enfia a própria justiça na cueca de seu garantismo egocêntrico. Ao povo devem ser mostradas as possibilidades não totalmente limpas de retirar a maior parte da sujeira da política nacional. Política é o que Maquiavel diz ter sido, não o que são Francisco de Assis gostaria que fosse. O povo precisa ver mais e mais esta realidade suja de tentativa de utopia para entender a dinâmica da permanente tentativa de limpeza cíclica do poder.

Por ora, o povo assiste atônito às negociações obrigatórias com juízes alienados e que garantem a impunidade, senadores corruptos, vozes hipócritas da imprensa que fazem apologia ao diálogo e depois condenam este diálogo e defenestram todo um governo, sem distinção das exceções – ou dos que tentam ser exceções. O niilismo, a descrença absoluta é o terreno mais fértil para o político psicopata que se apossa perversamente do poder público quando este é desacreditado. Desacreditar tudo e todos é dar poder livre aos piores. Ao Executivo, resta mostrar ao povo o esgoto por onde tem que passar. Mas sem se enfiar nele, como o dinheiro no reto do senador Chico Rodrigues. Ao povo, resta olhar para o espelho de suas próprias escolhas, da origem e das consequência delas. E olhar pro esgoto em que está enfiado e aprender com ele. Para tentar um esboço de visão e de alcance de uma possibilidade de céu.

Com Jovem Pan/Adrilles Jorge